O meu corpo de trabalho é constituído por diversas séries interligadas onde exploro a relação entre a vontade do corpo e o acidente. É durante esta ligação, este interregno, que os meus objetos são produzidos. Abre-se um espaço que se assume como experimental, uma espécie de jogo na procura pela forma, onde as respostas são primeiro manipuladas e depois percebidas através da observação. É algo que se assemelha a um precipício, que me garante uma mudança na forma de olhar e, consequentemente, o movimento do corpo em direção a mais formas, que por sua vez trazem mais interrogações. O objeto que vou apreendendo é para mim um recetáculo de experiências que moldam a existência humana. Observo o processo, mas também a realidade circundante e o corpo, aceito as respostas e perguntas sugeridas neste jogo, que muitas vezes não são percebidas numa primeira observação. É necessária uma atenção à carne.

 

Numa casa atelier, o ambiente onde vivo e desenvolvo a minha investigação, estas questões têm sido exploradas de forma intensa e catártica. O espaço expositivo vem depois, proporcionando uma reorganização do trabalho, uma abertura para mais questões; convidando o público a entrar nestes receptáculo, a jogar este jogo, e com sorte, ampliar os nossos campos de pesquisa pessoal.

Texto de Pedro Arrifano publicado no catálogo da exposição O Oscilante realizada na Ante-Sala e Salão da BASE, 2023.

 

O que esconde e o que mostra um rosto? Oscilações. Falta de estabilidade, hesitação, insegurança? Carolina Rocha dirá indeterminação. Todas as oscilações que dão nome a cada uma das peças expostas são aquilo que não se consegue determinar. São na verdade faces de indeterminação ou rostos indeterminados pelos contextos e porque nunca se consegue prever o que o vivo vai fazer. Não porque esteja atolado na dúvida, essa que paralisa o pensamento, mas porque o vivo é oscilante, não decide de imediato, tem várias possibilidades de decisão o que faz com que a dita indeterminação seja excitante, produtora, bem diferente de ser paralisante.

 

Os rostos aqui patenteados são de agonia, tristeza, mas será que são? Não serão mitos que vivem dentro de nós fruto de uma sociedade que nos incute desde tenra idade esses…medos? Não passaremos a nossa vida submetida a mitos? O mundo exterior como que se transforma em um projeto do mundo interior, e não como ficção, embora também como ficção.

 

O ser humano atual tem a nítida sensação de que o mundo – agora chamado claramente de “mundo exterior” – pode ser produto de atos de vontade, do pensamento, da linguagem humana no plano político e educacional, pois generaliza-.se a percepção de que as decisões de elementos singulares – que podem ser chamados de sujeitos – constroem o mundo.

 

Que fazemos ao medo? Mascaramo-nos? Escondemo-nos? Transformamo-nos? E se o medo também vier mascarado? Rostificado? Carolina, mostra várias faces desse medo rostificado, medos que nos fazem oscilar entre a perceção e a ação que resultam numa espécie de vertigem tal como a definiu Milan Kundera na obra “A insustentável leveza do ser”: “a vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio por debaixo de nós que nos atrai e nos enfeitiça, o desejo de queda do qual nos defendemos depois com pavor”. Na manifestação de uma ação que não se realiza surge o seu substituto: uma emoção que se degenerou. E são tantas as degenerações que a artista expõe…são tantos os medos que habitam em cada ser quando constata a sua insustentabilidade.

 

De certa forma, cada peça é um espelho onde nos revemos. Pintadas no formato A4 e A3 a tinta-da-china, tinta acrílica e guache, cada traço realizado é cópia do que nunca aconteceu, as cores escolhidas surgem misturadas com promessas que nunca foram feitas numa sociedade que parece uma tela que rabisca um horizonte pintado em luz e sombra. Esse amarelo propositado, mistura de alegria com doença, é o rosto velado num todo de oscilações de primeiro plano que, na repetição de serem visionados, parecem perder traços humanos e ter a capacidade estranhíssima – de des-individualizar, des-comunicar e des-socializar o rosto. O primeiro plano, aqui, é intensidade.

Texto de Pedro Arrifano publicado no catálogo da exposição Se eu não posso tocar, posso ver? realizada na Ante-Sala e Salão da BASE, 2022.

 

Se eu não posso tocar, posso ver? É o título que Carolina Rocha atribui à sua exposição. Uma pergunta que nos revela a importância que a artista dá ao toque. Pensemos. Se eventualmente não me for dada a oportunidade de tocar o objeto que tenho à minha frente, se isso me for proibido, eu conseguirei captá-lo, percepcioná-lo…dar conta que ele está ali?

 

A pergunta encerra em cima um poder irónico. Há de facto no trabalho da Carolina um lugar para aquilo que não se vê mas “está lá”, digamos que ela procura neste conjunto de trabalhos impressionar o espectador através de procedimentos extraordinários. Mas fá-lo, como Akróbatos (acrobata) que do latim significa andar na ponta dos pés. É discreta, pouco ruidosa mas deixa rasto…um rasto que importa seguir tal como a artista deixa seguir, até que seque, a cera de abelha nos seus moldes-contentores.

 

A intuição é o crivo nesta espécie de bailado entre a matéria natural e a matéria artificial (o pigmento que coloca na cera) e nas quatro fotos macro que são uma espécie de radiografia aos desenhos que produz. É ela que vai dar conta da realidade movente que se apresenta diante da artista. Uma forma humana de pensamento que faz voltar a consciência para a duração interior de cada individuo.

 

A arte é esta experimentação ou expressão da realidade singular. É o fluxo da duração que constitui a realidade mais íntima de todas as coisas. O artista não pretende representar as formas sensíveis, mesmo que por vezes assim o pareça. Carolina arranja meios e técnicas para expressar as singularidades e conduzir o espectador a também experimentar essas singularidades.

 

De certa forma esta exposição trata daquilo que nos podemos abstrair, ou seja daquilo que separa, retira, subtrai. O mundo das concordâncias e dos reconhecimentos não a apela. Direciona-se para o acidente, aquilo que aconteceu mas podia não ter acontecido. Um acidente controlado, que não se deixa ferir de morte. A obra não morre neste acidente, pelo contrário, o acidente é a causa das suas obras entrarem em processo e viverem.

 

Este acidental que acontece é resultado da descarga de caos no meio que a artista utiliza. Uma catástrofe-germe de ritmo, princípio da intensidade, da sensação na obra. É potência/dinamismo: caminho para a essência. A arte luta com o caos, para torna-lo sensível e a artista capta um pedaço de caos, tanto num molde-contentor como numa foto trémula tirada a um desenho. O corrimento da cera de abelha no molde e a mão tremula, o pequeno desvio dado a uma fotografia tirado a um desenho, é o seu caos-germe.

 

É algo que a artista vai direcionando e ao mesmo tempo distanciando-se do ensinado, domesticado. A noção de caos-germe quer dizer que existe algo que a artista coloca na sua obra para começar a produzir linhas, que são germinais. O que a artista visa são as diferenças mínimas, o caos que fervilha microscopicamente sob as grandes unidades visíveis, esta é para ela a “experiência real”.

 

Captar a essência da arte é descrever as fases do processo, defendia o filósofo alemão Georg Simmel. Este processo elaborado por Carolina é genético, é dele que se capta o modo como a génese desponta na obra em estado nascente e é dele que depois se vislumbra o amadurecimento da obra finalizada.

Texto de Sara Leal publicado na revista Grotta – Arquipélago de Escritores, 2021/2022.

 

Carolina Rocha é uma artista plástica cujo ponto de partida é o da experimentação, da relação ação-matéria e das questões que o processo lhe provoca. É dessa interação que precipitam – na significação química da palavra – as suas ideias e os seus rasgos até se transformarem em premissas.

 

Carolina dá lugar ao acidente, assume que o resultado é um fruto do acaso, tornando-se assim irrepetível e único. Permite que uma variável não controlada, fortuita, tenha um papel na sua criação. É a sua forma de privilegiar o processo.

 

Uma consideração de introito: perceber que as réplicas não são cópias. Cada uma resulta de um gesto (ação), um estímulo, num determinado momento. E é o tempo que determina a integridade da impressão.

 

Há um beleza poética na impossibilidade de repetir. Essa singularidade é uma identidade.

 

É bem sabido que o tempo é um escultor de renome. Já protagonizou inúmeras obras cinematográficas, literárias e ainda leva a existência pelo quotidiano dentro.

 

Onde está o fim? Pergunta a Carolina.

 

Este processo assemelha-se aos mecanismos da memória.


No exercício de recorrer à nossa sedimentação mental vamos obtendo diferentes impressões ao longo do tempo: uma memória fresca é vívida e vai-se esvaindo. Ao original vão-se reportando imagens com cadências evolutivas cada vez mais ténues, menos vigorosas e precisas. Deixar-se secar o estímulo é permitir que desvaneçam. Tal como o fim que a Carolina omite.

 

Diria, no fim teremos um papel outra vez branco, inimpressionável. A impressão só existe se houver substância, isto é, presença.

 

Quererá ela relembrar a finitude com que nos confrontamos? E com isso a probabilidade de desaparecermos da memória dos que ficam, até que não haja vestígio da nossa passagem pela terra? Será um apelo à revisitação da memória, a única catalisação que possibilitará a manutenção da substância ativa?

 

O título presença que a Carolina dá ao original, confere uma pista, como um fotografia antiga que fortuitamente encontramos num livro. A importância do vestígio na memória.

 

Num plano mais lato poder-se-á potenciar o raciocínio à memória colectiva no sentido da preservação desse que é o nosso património histórico e emocional e de possibilitar que este continue a causar impressões.

 

 

Texto de Assunção Melo publicado no Diário Insular, 2012.

 

Carolina Rocha apresenta até ao dia 7 de junho do corrente ano, na Sala Dacosta do Museu de Angra do Heroísmo, uma exposição que vale a pena a visitar, não só por razões estéticas e imperativas de conhecermos os nossos artistas, mas também pelas questões que esta exposição me colocou (e coloca ainda à história da arte) e que neste artigo pretendo refletir. Carolina Rocha nasceu na ilha Terceira no ano de 1987. É licenciada e mestre de Artes Plásticas pela Escola Superior de Design das Caldas da Rainha. Desde 2010 tem participado em várias exposições individuais e coletivas, bem como é detentora de prémios nos anos de 2012 e 2014.


Nesta mostra individual que a artista intitula de Mistérios de Tinta, enquadrando no âmbito da disciplina da pintura, rotulagem esta que (não poderei estar alheia à opção inicial) me colocou várias questões e que pretendo fazer uma incursão breve pela arte contemporânea, Interpretei como pintura evolutiva as diferentes situações que apresenta nas suas peças e que se dividem em três principais conjuntos corroborados pelos títulos seriados: PROCESSO, composto por duas peças, MISTÉRIOS, um conjunto de 12 obras e CAPELO, duas peças que a artista apresenta no chão daquele espaço.


Nesse sentido é, a meu ver, importante, ter em conta estas três categorias para que se possa então compreender o discurso que Carolina Rocha apresenta nesta exposição. Na primeira série, Processo, as duas pinturas do mesmo formato são, puramente, bidimensionais. Compostas por uma tinta aquosa que evidencia a mancha, embora monocromática, são indicativas do processo a ser utilizado nas restantes séries, ou seja: uma mancha marcadamente compacta na zona superior do quadro, que se esvai
em laivos de tinta, percorre a restante área pictórica, desenhando cursos aquosos até à zona inferior. Podemos facilmente perceber que a artista, ao colocar a mancha compacta e aquosa numa superfície, inicialmente horizontal, inclina o plano do quadro para a vertical, por forma a obter aquele resultado. Efetivamente, será este o processo optado para a série de doze quadros que se segue, sem bem que a textura e a natureza da tinta sejam diferentes.


Na série Mistérios, praticamente monocromática, mas de cores diferentes entre si, são visíveis os tons neutros e os ocres semelhantes a tons de terra e de lava. Carolina Rocha pretende com este conjunto, fazer uma analogia aos percursos de lávicos, que compuseram estas ilhas. Num plano inicialmente horizontal, é colocada uma camada muito espessa de tinta com uma textura densa que permite, ao inclinar do plano para a vertical, que sejam as leis da própria física e gravidade que “pintem” o quadro, sem que haja uma intervenção direta da artista. Esta técnica faz com que sejam criadas formas surpreendentes e casuais sem intervenção humana, eventualmente, divina.


Semelhante técnica será utilizada nas peças de chão, intituladas de Capelo, que considero esculturas. Há então, assim, uma evolução da pintura bidimensional, para uma pintura tridimensional de baixos-relevos até a uma escultura de vulto, propriamente dita. Como referi, no primeiro parágrafo, esta exposição colocou-me várias questões que eu própria atribuí nomenclatura (1, 4, 5, 8) e outras que entendo serem próprias da história da arte (2, 3, 6, 7):


1 – Artista-espetador / observador: Carolina Rocha não se assume como a única criadora do processo. O processo de criação é também um Auto Processo em consonância com as leis da física e da gravidade, limitando-a a uma condição de espectadora/ observadora, bem mais próprias do público, tendo ela a difícil função de definir os limites, de parar, ou seja, o tempo certo de “congelar” o desenvolver do processo.


2 – Artista-criador/ Deus Artifex: A artista equipara-se, na utilização deste método a um Criador, no sentido lato do termo, a um Deus Artifex, como Omar Calabrese o define e que tem nas suas mãos a função de criar novas formas na natureza e isso, inicialmente, foi a função de Deus. Neste conceito, a artista sabe que tem esse poder e utiliza-o com todas as leis que lhe são permitidas pela natureza humana.


3 – Artista-performativo – action painting: A artista neste processo faz parte da açãopara a concretização de um resultado. Action painting é um movimento da história da arte que surgiu nos finais da 2a Guerra Mundial, em que permitia ao artista que ele fizesse da pintura um ato performativo que exigia uma ação muito concreta para um resultado final e que ficasse impressa essa mesma ação. Exemplo disso são as pinturas de Jackson Pollock. Na série Mistérios sabemos, precisamente, qual foi a ação e os gestos que levaram àquele resultado intencional.


4 – Pintura-Relevo: A pintura é geralmente, por definição, um suporte bidimensional, ao qual é colocado tinta / cor e se desenvolvem formas e composições bidimensionais, até porque a tinta, tradicionalmente, tende a confundir-se com o suporte. Nem sempre os artistas assim o entenderam e foram colocando mais ou menos textura nas suas obras, mas fazer da própria tinta, ela mesma, forma e composição é já uma tarefa que questiona as premissas mais conservadoras da própria pintura. A pintura de Carolina Rocha é, a meu ver uma espécie de baixo-relevo, uma vez que a tinta monocromática permite, através desses relevos, a inclusão de zonas de sombra e de luz que formam “desenhos”.


5 – Pintura-Escultura: Na série Capelo, a pintura-relevo, evolui para escultura. A artista coloca-a num outro plano que não a parede. O próprio chão é o local privilegiado da escultura e assim se assume, embora Carolina Rocha certamente continue a chamar de pintura, sobretudo pela constituição da matéria: tinta, muita tinta.


6 – Automatismo: Foi um processo amplamente usado pelos dadaístas do início do século XX. Permitiam que fossem forças do acaso a compor as suas próprias peças. Uma das técnicas utilizadas foi a de deixar cair pequenos pedaços de papel sobre os quadros e também fossem as leis da física e da gravidade a decidir o lugar de fixação daquele pedaço de papel. Experimentações análogas também foram usadas na literatura e poesia. Carolina Rocha permite-se ao automatismo de fixar um determinado momento e estado de espírito e que nos é apresentado nesta mostra.


7 – Auto-processo: É mais do que um automatismo, é não deixar que haja intervenção humana no desenvolvimento daquelas formas. Tal como referi em artista – espetador,
o processo de acontecer formas é o da própria tinta. A intervenção mínima da artista é a de simplesmente de fazer parar a evolução das formas, de modo a que haja um enquadramento mínimo de sustentação e de viabilidade da própria peça.


8 – Pintura-verdade: Sem artifícios de cor, de forma e de textura dissimulada, a pintura de Carolina Rocha é formulada através da própria tinta e contém em si a sua própria verdade. Ser simplesmente cor e textura, num plano e formato previamente definido, comandada pelas mãos do seu criador.

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